Processo
0003/2022-CIV3-T
Relator
Dra. Tânia Pereira Brás
Primeiro Adjunto
Dra. Marilene Camate
Segundo Adjunto
Dr. Lourenço José
Descritores:
Providência Cautelar Especificada, para a Restituição Provisória de Posse
PROC.N.º 0003/2022-CIV3 – T
ACÓRDÃO
Os Juízes da Câmara do Cível Contencioso, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, Trabalho, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação do Lubango, acordam em conferência em nome do povo:
I. RELATÓRIO
Na Sala de Competência Genérica de Caluquembe do Tribunal de Comarca de Caconda, AA, solteiro de 58 anos de idade, residente no município de -------, podendo ser localizado por intermédio dos seus Advogados, propôs a Providência Cautelar Especificada, para a Restituição Provisória de Posse contra R, RR e RRR, todos residentes no município de ---- na aldeia do -----, sector do ---, aduzindo em síntese os seguintes fundamentos:
1. Que está a decorrer no referido tribunal uma acção principal declarativa de condenação sob o número 34-B/2019, interposta pelos requeridos da presente providência.
2. Antes da conclusão do referido processo, os requeridos intitularam-se donos do espaço em litígio, destruindo todos os bens existentes no referido espaço pertencentes ao requerente.
3. Em face disso, a Administração Municipal de ------- (Comissão de Resolução de Conflitos de Terra), convocou as partes com vista a conciliá-las, não tendo produzido os efeitos desejados.
4. Remetido ofício com as conclusões e recomendações do referido encontro a Direcção Provincial da Agricultura, por sua vez emitiu a acta nº1/07 de 20 de Junho de 2007, aceitando a decisão da Administração Municipal de ---------.
5. O referido espaço pertenceu ao Senhor X, família do requerente há quatro gerações.
6. Os pais do requerido RR, deixaram o espaço na década de 70 (setenta) por ordem de Z, filho do anterior dono do espaço, que apenas o tinha cedido temporariamente.
7. Passado algum tempo os requeridos, alegaram serem donos do espaço, o que desencadeou um litígio com os pais do requerente no período de 2002 a 2006.
8. Após a morte de seu pai em 2008, o requerente continuou a viver na mesma área sem nunca ter sido importunado.
9. Agindo de má fé os requeridos, em 2019, invadiram o espaço de 100 hectares, que possui imóveis e tem sido utilizado para o cultivo de cereais, hortaliças, citrinos e para prática da pastorícia.
10. Passaram-se 19 anos desde que o recorrente sucedeu os seus pais no espaço, facto que a autoridade tradicional da Embala de --------confirma.
Termina pedindo a restituição provisória de posse do terreno rural de 100 hectares de superfície, na aldeia do -----, sector do -----, município de -----, província da -----, sem citação nem audiência dos requeridos.
Com a petição inicial arrolou testemunhas e juntou diversos documentos de fls 10 a 18 dos autos.
Foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo requerente.
Em despacho Saneador-Sentença o Juiz da causa deu por procedente o procedimento cautelar e ordenou a restituição imediata e provisória do terreno.
Inconformados vieram os requeridos interpor recurso, fls 45 dos autos.
O recurso foi admitido como agravo, com subida imediata e nos próprios autos.
Em sede de alegações de fls 54 a 60, os requeridos referem em síntese:
1. Que o espaço em litigio não pertenceu ao Sr. X, pelo contrário foi a família ---- que cedeu uma parcela da terra a um dos bisavós do requerente.
2. O ancião --------, nascido em 1914, afirma que a aldeia foi em primeiro lugar habitada pelos senhores ------ e ------- que herdaram dos Senhores ---- e -----, sendo que após a morte destes, 3,53 hectares passaram para o Sr X e daí para o requerente.
3. A comunidade reconhece que o requerente deve apenas trabalhar na terra concernente a 3,53 hectares.
4. R, tio do requerente, confirma tais factos e vai mais longe, afirmando que é o requerente da providência que liberta os animais que devoraram as plantações da comunidade, provocando prejuízos.
5. Que o requerente realiza actividade agrícola e criação de gado de forma infiltrada, impedindo a vida, hábitos e costume da população, tornando-os em mendigos.
6. O pai do requerente, falecido em 2002, não foi sepultado no local por inexistência de laços sanguíneos com os autóctones da área, tornando estranho o requerente evocar a titularidade das parcelas em nome dos seus ancestrais.
7. Os requeridos não destruíram os bens do requerente, mas sim a comunidade tendo a terra como seu único recurso de subsistência, no ano agrícola de 2019, lavrou a terra, semeou diversos produtos, tornando-se injusto qualquer medida que os proíba de trabalhar nela, porque causaria prejuízos incalculáveis.
Termina pedindo a alteração da decisão recorrida.
Não houve contra-alegações.
Remetido ao tribunal ad quem, o recurso foi aceite como o próprio, interposto atempadamente e com legitimidade.
À vista, o Digníssimo Magistrado do Ministério Público junto desta Câmara, apresentou o seu douto parecer de fls. 103 a 106 dos autos.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. OBJECTO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso delimitado para além das meras razões de direito e das questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões formuladas pelas partes – artigos 660.º n.º 2, 664 n.º 3, 684.º e 690.º n.º 1 todos do CPC – emerge como questão única a apreciar saber se:
Estão ou não reunidos os pressupostos para procedência da providência cautelar de restituição provisória da posse?
QUESTÃO PRÉVIA
Contudo, antes de responder a única questão suscitada e por razões didácticas, não podemos ficar indiferentes aos alertas referidos pelo Ministério Público e corroborados pela nota de revisão da secretária, sobre as boas práticas processuais que devem os tribunais observar na tramitação dos autos.
Com efeito, dispõe o artigo 266.º C.P.C. “Cumpre ao Juiz remover os obstáculos que se oponham ao andamento regular da causa, quer recusando o que for impertinente ou meramente dilatório, quer ordenando o que, sem prejuízo do disposto no n.º1 do artigo 264.º, se mostre necessário para o seguimento do processo.”
A fim de que o processo decorra normalmente, sem atrasos e atropelos indesejáveis à boa decisão da causa, o artigo acima referido, confere ao Juiz os poderes indispensáveis à consecução desse escopo e a que o Prof. Alberto dos Reis chama de poderes/deveres de instrução, disciplina e de impulsão. – Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, Vol.I, pág.366.
Com efeito, na tramitação da providência não se cuidou de lhe dar melhor arrumação, encontrando-se ausentes termos, mandados e certidões de notificação que devem acompanhar o despacho do Juiz, além de não ter havido preocupação com o rigor e gradual cumprimento das custas e preparos devidos, conforme disposto no artigo 12.º n.º 6 da Lei das Custas Judiciais - Lei 9/05 de 17 de Agosto.
Por outro lado, o Juiz a quo decidiu em despacho saneador-sentença, quando, nos termos do artigo 691.º C.P.C., apenas o despacho saneador que conheça do mérito da causa ou da procedência de alguma excepção peremptória, tem essa designação.
Os procedimentos cautelares têm na sua génese a prova sumária do direito ameaçado, exigindo ao julgador na formação da sua convicção apenas um juízo de verossimilhança, de mera probabilidade, logo a decisão a proferir não será de mérito e não terá qualquer influência na decisão final. – vide artigos 386.º e 401.º C.P.C.
Em face do exposto, o Juiz ao proferir decisão sobre um procedimento cautelar fá-lo por despacho, pois a sentença e o saneador-sentença são relegados para a decisão da acção principal da qual é dependente – vide artigos 156.º, 382.º, 384.º, 395.º,401 n.º 2; 405.º e 417.º todos do C.P.C.
Assim, atendendo aos poderes de gestão processual atribuídos ao Juiz, recomenda-se de futuro uma autuação pautada pelo integral cumprimento das normas processuais, de custas e demais regras legais que visam a normal e correcta tramitação do processo.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Da sentença recorrida resultam provados os seguintes factos:
1. O requerente detém a posse do terreno em causa por sucessão por morte do seu pai.
2. Em 2005 alguns populares quiseram ocupar o espaço e que após intervenção dos técnicos da administração municipal, o conflito foi dirimido.
3. Os requeridos invadiram o terreno no mês de Julho, destruíram o cultivo, o curral do gado e parcialmente a residência dos trabalhadores do requerente e queimaram as árvores, causando vários prejuízos, facto que foi presenciado pela testemunha Agostinho Hossi.
IV. O DIREITO
Passando à apreciação da questão objecto do presente recurso, importa verificar o seguinte:
Estão ou não reunidos os pressupostos para procedência da providência cautelar de restituição provisória da posse?
Os procedimentos cautelares constituem medidas judiciais preventivas e urgentes com a finalidade de evitar o “periculum in mora”, ou seja, o perigo de que a morosidade própria de uma normal acção judicial acabe por inviabilizar, na prática, o direito de que o requerente da providência se arroga.
O Prof. Castro Mendes in Direito Processual Civil, 1980, 1.ª Edição, p.297, definia-os como “o processo que permite que o tribunal possa decretar uma composição provisória do litigio, que permite esperar pela sua composição definitiva, e demonstrada que seja uma probabilidade séria da existência do direito”.
Portanto, os procedimentos cautelares são meios expeditos que têm por fim assegurar os resultados práticos da acção, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização de um direito, conciliando, na medida do possível, o interesse da celeridade com o da ponderação.
Quanto à providência cautelar de restituição provisória da posse, importa desde logo considerar o artigo 1279.º do C. Civil que prescreve o seguinte: “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito a ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.”
Portanto, a restituição provisória constitui um meio de defesa da posse, ao serviço do possuidor, contra actos de esbulho violento.
Por sua vez, em perfeita sintonia com aquele inciso legal, dispõe o artigo 393.º do C.P.Civil “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituída provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.”
E dispõe o artigo 394.º do mesmo diploma legal “se o Juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.
Da conjugação das citadas disposições legais, resulta que a procedência do pedido cautelar de restituição provisória da posse, depende da alegação e prova dos seguintes requisitos cumulativos: a posse, o esbulho e a violência.
Vejamos, pois, se atentos a prova constante dos autos, se verificam todos estes pressupostos.
a) Quanto à posse
O artigo 1251.º do C. Civil define “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Segundo a concepção adoptada pela nossa lei na referida norma, a posse é integrada por dois elementos: o corpus – elemento material – que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzida no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela; e o animus, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente a esse domínio de facto.
Afirma Henrique Mesquita, in Direitos Reais, Lições 1966-67, pág.68, “possuidor é apenas aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem, além do corpus possessório, tenha também o animus possidendi, isto é, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real. Isto significa que não basta fazer prova do corpus para beneficiar do regime possessório é necessário, além disso, comprovar a existência de animus.”
Da analise e apreciação feita aos autos, resulta que o tribunal baseou a sua convicção apenas no depoimento das testemunhas do requerente, não constando do processo qualquer documento ou título que comprove os factos alegados.
Decorre da lei que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo certo que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal, isto é, na apreciação e valoração das provas vigora o principio da livre apreciação do julgador – vide artigos 341.º e 396.º ambos do C. Civil.
Nas providências, apesar de ser exigível ao julgador apenas um juízo de mera probabilidade de existência do direito, tratando-se de conflito de terras, a mera alegação da testemunha de que o terreno pertenceu aos ascendentes do requerente, é insuficiente para determinar a existência do direito de posse.
Neste caso especifico, perante a inexistência absoluta de prova documental nos autos para aferir o animus, à cautela, deveria o tribunal ter ouvido préviamente o requerido para uma melhor valoração da prova testemunhal e formação da convicção do julgador quanto a titularidade da terra em conflito.
Convém realçar que tratamento análogo foi dada a questão suscitada no Acórdão do Proc. N.º 004/2022-L – Agravo, de 30 de Junho de 2022, desta Câmara Cível.
Concretizando, a preterição da audiência do requerido tornou a prova de tal ordem débil que não é possível este tribunal de recurso, formular um juízo de verossimilhança sobre a existência do direito de posse do requerente, baseado única e exclusivamente no depoimento das testemunhas de fls 23 e seguintes dos autos.
Ora, sem posse, precludem os restantes pressupostos.
Em face do exposto, impõe-se a alteração da decisão recorrida.
V. DECISÃO
Nestes termos e fundamentos, acordam os juízes da 1ª Secção desta Câmara, em dar provimento ao recurso e, em consequência, alterar a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.-art.453º C.P.C.
Lubango,1 de Setembro de 2022
Os Juízes Desembargadores
Tânia Brás
Marilene Camate
Lourenço José