Processo
0002/2022-FAM1-T
Relator
Dra. Tânia Pereira Brás
Primeiro Adjunto
Dra. Marilene Camate
Segundo Adjunto
Dr. Lourenço José
Descritores:
Estabelecimento de Filiação, Sob a Forma Sumária
ACÓRDÃO
PROC. Nº 0002/2022-FAM1-T
Os juízes da Câmara do
Cível, Contencioso e Administrativo, Fiscal e Aduaneiro, Trabalho, Família e Justiça
Juvenil do Tribunal da Relação do Lubango, acordam em conferência em nome do
povo:
I.
RELATÓRIO
Na 1ª Secção da Sala da
Família, Trabalho e Menores do Tribunal da Comarca de Moçâmedes, o Digno
Curador de Menores em representação do menor A, intentou acção de
estabelecimento de filiação, sob a forma sumária contra R, casado, de 43 nos de
idade, funcionário ----, filho de ----elo e de -----, natural do -----a,
província do -----e, aduzindo, em síntese, os seguintes fundamentos:
1.
O menor A, nascido aos 19 de Maio de 2018,
na província do ------, é filho biológico de X, solteira de 37 anos de idade,
filha de ------ e de -----, natural do -----a, província do -----.
2.
Na vigência do relacionamento amoroso que
durou 6 anos, R e X, foi concebido o menor A.
3.
Por desentendimento conjugal, o casal decidiu
separar-se e desde então R, não assume o papel de pai do menor.
4.
Com vista a salvaguardar os direitos e
interesses legalmente protegidos do menor, a senhora X, efectuou o registo do
mesmo unilateralmente, sem fazer constar o nome do pai no seu assento de
nascimento, aguardando que o pai complete a lacuna existente no registo do
menor.
5.
Pelo facto de o pai estar devidamente
identificado, pede a intervenção do tribunal, para após a realização do
competente inquérito, declare por sentença a progenitura paterna do menor e
consequentemente a aquisição da posse de estado de filho, com os benefícios dai
decorrentes.
Termina pedindo a procedência
da acção e que A. seja declarado filho de R e, em consequência, seja averbada a
filiação paterna no competente assento de nascimento do menor junto da Conservatória
do Registo Civil.
Com a petição inicial
juntou requerimento, auto de declarações de estabelecimento de filiação e
diversos documentos de fls. 6 a 22 dos autos.
Devidamente citado a fls.
27 dos autos, o requerido contestou a acção por seu próprio punho, referindo em
síntese:
1.
Que nunca foi considerado como esposo da
senhora X, apenas mantiveram uma relação amorosa que durou 2 anos, tendo gerado
uma filha fruto da mesma.
2.
Romperam com a relação amorosa no ano de
2014.
3.
No mês de agosto de 2017, por imprudência
manteve relação sexual com coito interrompido, motivo pelo qual suscita dúvidas
quanto a paternidade do menor A.
4.
Que nunca tinha sido abordado para o
registo do menor porque tinha dúvidas quanto a gestação, apenas tomou
conhecimento do registo unilateral do menor quando foi chamado na procuradoria.
Juntou apenas o boletim
de nascimento da única filha registada da relação.
Continuando a marcha do
processo, a juíza da causa ordenou que os autos aguardassem resposta do ofício
no cartório num prazo de trinta dias.
Acto continuo, proferiu
um despacho para que no prazo de 5 (cinco) dias, o requerido constituísse
advogado nos termos do artigo 33º do C.P.C, fls. 34 a 35.
Devidamente notificado a fls.
37, constituiu advogado forense e juntou contestação aos autos, tendo referido,
em síntese:
1.
Que admite os factos aludidos nos
articulados 1º e 2º do requerimento inicial.
2.
Manteve uma relação amorosa com a senhora X
entre os anos de 2012 a 2013, terminando a mesma em 2014, ficando o requerido
com a responsabilidade da filha menor ---------.
3.
Teve um encontro amoroso com a senhora X,
no mês de Agosto de 2017, tendo sido informado do estado gestacional da senhora,
mas que duvidou pelo facto de ter praticado coito interrompido.
4.
Que apenas tomou conhecimento do registo
do menor quando foi notificado para comparecer na Procuradoria, tendo feito
exame de ADN, para se aferir a veracidade da paternidade.
Termina pedindo que seja
suspensa a instância até o resultado final do teste de ADN para aferir a
paternidade e que seja isento de custas, juntou cópia do B.I. dos vogais do
conselho de família.
De seguida a juíza da
causa, proferiu despacho marcando audiência de discussão e julgamento de folhas
53 a 54 autos.
A fls 77 foi proferida
sentença que declarou procedente a acção e condenou o Requerido no pedido.
Notificadas as partes da
decisão, inconformado o Requerido interpôs recurso de apelação, admitido nessa espécie
com efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios autos, fls. 95 a 96 dos
autos.
Em sede de alegações, o
apelante, referiu em síntese:
1. Que
o apelante não nega tido relação sexual com a recorrida, mas afirma que houve
coito interrompido, motivo pela qual suscita dúvidas por parte do recorrente.
2. Para
melhor produção de provas foi feito do exame de ADN, que esta a ser aguardado
até a presente data.
3. O
Tribunal de Comarca de ------ deu como provados os factos alegados na petição inicial,
sem ter recebido o exame de ADN, que tem alto grau de probabilidade para
declaração da paternidade, pois a sentença baseia-se simplesmente nas
declarações prestadas pelas partes.
Concluiu, pedindo o
provimento do recurso e a alteração da decisão recorrida.
Remetido ao tribunal ad quem, o recurso foi aceite como o
próprio, interposto atempadamente e com legitimidade.
Notificado o Ministério
Público na qualidade de apelado, contra-alegou pugnando pela manutenção da
decisão proferida pelo tribunal a quo, atendendo a falibilidade da técnica do
coito interrompido e, que a não obtenção do resultado do exame de ADN não
excluir a paternidade do menor.
Termina pedindo a negação
do recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida por ter sido elaborada em
harmonia com os valores da verdade e da Justiça.
Colheram os vistos
legais.
Cumpre apreciar e
decidir.
II.
QUESTÃO
PRÉVIA
No âmbito da
fase recursória, diversamente do que sucede na primeira instância, o controlo
liminar dos pressupostos processuais e em especial, da admissibilidade do
recurso deve ser mais rigoroso, porquanto esta fase do processo não comporta
fase de saneamento, como momento normal que é para certificação dos
pressupostos processuais e para o julgamento antecipado da lide.
Neste
domínio, a lei processual permite a possibilidade do tribunal de recurso fazer
esse controlo, inclusive, em momento subsequente ao despacho preliminar do
relator, nos termos dos artigos 704.º, 713.º n.º 2 e 660.º todos do C.P. Civil,
com vista a obstar que se reaprecie decisões cujo recurso, por qualquer razão
legal, seja inadmissível.
A
verificação da admissibilidade do recurso, envolve uma apreciação de carácter
jurisdicional sobre a regularidade e validade da instância, bem como sobre a
legalidade da pretensão do recorrente.
Com efeito, consta
da nota de revisão de fls 153 dos autos, o seguinte apontamento:
“12. Quanto
a recorribilidade importa realçar o seguinte:
- À data da propositura da acção em 16 de
Agosto de 2018, vigorava a lei em que a alçada do Tribunal Supremo era de
1.408.001,00 KZ, o que coincide com o valor da acção dos presentes autos.
-
Proferida a sentença, em 30 de Setembro de 2021, já vigorava a Lei nova
n.º 5-A/21, de 5 de Março, com um novo valor da alçada do Tribunal da Relação fixado
em 6.160.000,00 KZ.
- No entanto, verifica-se que o valor da
acção não foi alterado pelo Tribunal A quo e nem requerida a sua alteração pela
parte interessada.”
Em função do exposto, decorre do
artigo 678.º C.P. Civil, se o recurso tiver por fundamento a violação das
regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a
ofensa de caso julgado, é sempre admissível, seja qual o valor da causa.
Mas, se o
recurso não respeitar a nenhuma das situações acima referidas, tratando-se de
recurso ordinário, só é admissível nas decisões proferidas em causas de valor
superior a alçada do tribunal de que se recorre.
Portanto, na
apreciação da admissibilidade do recurso, deve-se atender a dois aspectos
fundamentais: ao valor da causa e a alçada do tribunal recorrido.
Em coerência
com o referido, a toda causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em
moeda legal e relevante para determinar a competência do tribunal, a forma do
processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal, conforme disposto
no artigo 305.º C.P. Civil.
Para Antunes Varela, M. Bezerra e Sampaio Nora,
in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra editora, 1985, pág. 249 «trata-se
de um elemento de importância capital, quer para o efeito da estimativa das
custas do processo (designadamente para o cálculo do preparo inicial), quer
para a fixação da forma de processo aplicável à acção, quer para o efeito da
admissibilidade de recurso.»
O Código do
Processo Civil classifica o valor da causa como um incidente de instância e
atribui critérios gerais e especiais para a fixação do seu valor, dependendo do
tipo de acção a intentar em juízo e obrigando o Autor a declarar o valor na
petição inicial. – Vide artigos 306.º e seguintes; 467.º n.º 1 al. e)
C.P.Civil.
À data da
propositura da acção, o Autor declarou como valor da causa a quantia de um
milhão e quatrocentos e oito mil e um Kuanzas, respeitando a regra do artigo
312.º do C.P. Civil, relativamente ao valor da causa nas acções sobre o estado
das pessoas e em consonância com o artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 9/05, de 17 de
Agosto – Lei sobre a actualização das custas e de alçada dos tribunais.
Contudo, no
decorrer da tramitação do processo e com a entrada em funcionamento dos Tribunais
da Relação, houve uma alteração a alçada dos tribunais imposta pela Lei n.º 5 –
A/21, de 5 de Março de 2021 que fixa a alçada dos Tribunais de Comarca em três
milhões e oitenta mil Kuanzas e dos Tribunais da Relação no dobro daquele
valor. –Vide artigo 2.º do referido diploma legal.
Sucede,
porém, que o Autor não actualizou o valor da causa em função da lei nova.
O Réu, ora apelante, e o Juiz da causa também
não modificaram o valor, embora tivessem essa prerrogativa, nos termos dos
artigos 314.º e 315.º ambos do C.P. Civil.
Dispõem os
nºs 2 e 3 do artigo 315.º que o valor da causa se considera definitivamente
fixado «na quantia acordada» logo que seja proferido saneador. Não havendo
saneador ou tratando-se de acção cujo valor só se defina pelo seu decurso, logo
que seja proferida sentença.
Respeitam as
disposições à verificação oficiosa, posto que, para a verificação provocada, os
limites temporais estão marcados no artigo 314.º C.P. Civil.
A partir dos
referidos momentos, «a acção passa a ter um valor inalterável, mesmo que
flagrantemente contrario à realidade. Nem o juiz de 1.ª instancia nem os
tribunais de recurso lhe podem atribuir ou podem considerar outro.» In Manual dos Incidentes de Instância de
Eurico Lopes Cardoso, Almedina, 1965, pág. 80.
Assim, «deve
considerar-se fixado o valor indicado na petição do autor e não impugnado pelo
réu, se o juiz o não alterou oficiosamente nos termos do artigo 315.º C.P.C.» –
Ac. STJ, de 20.3.1964: BMJ, 135.º, pág.
406.
Mercê do
exposto, o valor da causa encontra-se definitivamente fixado em um milhão e
quatrocentos e oito mil e um Kuanzas.
Será que o
valor da causa fixado é superior a alçada do tribunal recorrido?
A alçada de um tribunal é
o limite de valor da acção dentro do qual um tribunal julga sem que das suas decisões
caiba recurso ordinário. – In Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4.ª edição, Almedina, pág.77.
Ora, a acção foi intentada aos 16 de
Agosto de 2018 e, ao abrigo da lei antiga, o valor da causa admitia recurso
ordinário pois era superior a alçada do Tribunal de Comarca, nos termos do
artigo 2.º n.º 2 da Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto de 2005 – Sobre a
actualização das custas judiciais e de alçada dos tribunais.
No entanto, a
sentença recorrida foi proferida aos 30 de Setembro de 2021, ou seja, sob a
vigência da nova lei das alçadas, mediante a qual, o valor da causa não admite
recurso ordinário por ser inferior a alçada do Tribunal recorrido, vide artigo
2.º n.º 1 da Lei n.º 5 – A/21, de 5 de Março – Lei que altera a lei sobre a
actualização das custas judiciais e alçadas dos tribunais.
Qual será a
lei aplicável para efeitos de recorribilidade da decisão: a lei antiga ou a lei
nova?
No nosso
ordenamento jurídico vigora o principio da não retroactividade das leis, consagrado
no artigo 12.º do C. Civil, no sentido de que elas só se aplicam para o futuro.
Contudo,
dispõe o n.º 2 do referido artigo, quando dispuser directamente sobre o conteúdo
de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem,
entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que
subsistam à data da sua entrada em vigor.
No caso da
alçada dos tribunais e da admissibilidade do recurso, o entendimento do
legislador ordinário coaduna-se com o acima referido, pois o conflito de acções
intentadas ao abrigo da lei antiga, mas ainda em tramitação nos tribunais na
vigência da lei nova, é resolvido pelo artigo 2.º n.º 3 da Lei n.º 5-A/21, de 5
de Março ao estatuir que “a
admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei vigente
à data da interposição do recurso, excepto quando se trate de causas relativas
a bens imóveis, que deverão ser reguladas pela lei em vigor ao tempo em que foi
instaurada a acção.”
Assim, no caso concreto, a lei aplicável é a
lei vigente à data da interposição do recurso.
Concretizando,
o recurso foi interposto aos 9 de Novembro de 2021, logo, a lei vigente é a Lei
n.º 5 – A/21, de 5 de Março e o valor da causa fixado está dentro da alçada do
Tribunal recorrido.
Como tal, a
decisão não admite recurso ordinário.
III.
DISPOSITIVO
Nestes
termos e fundamentos, acordam os Juízes da 1.ª Secção desta Câmara, em negar
provimento ao recurso por irrecorribilidade da decisão.
Custas
pelo recorrente.
Registe
e notifique.
Lubango,
23 de Agosto de 2022
Os
Juízes Desembargadores
Tânia
Pereira Brás
Marilene
Camate
Lourenço
José