Processo
0011/2022-CIV1-A
Relator
Dr. Domingos Astrigildo Nahanga
Primeiro Adjunto
Dr. Bartolomeu José Hangalo
Segundo Adjunto
Dra. Marta Marques
Descritores:
Acção de reivindicação de propriedade; anulação da escritura pública de compra e venda; ex-rua dos pescadores; qualidade de viúva.
I- A venda efectuada pelo Estado a favor de qualquer uma das partes, no âmbito do seu poder de disposição, sempre se referiu a uma fracção e não a totalidade do imóvel descrito na matriz predial nº 430, como se depreende das escrituras públicas de compra e venda celebradas entre o Estado e as partes., não tendo havido por parte do Estado qualquer transmissão da propriedade de todo o imóvel, a favor da apelante, a venda de que ela é beneficiária não padece de qualquer vício merecedor da decisão de anulação da escritura pública. O facto de nas duas escrituras celebradas pelo Estado com as partes, constarem o mesmo imóvel e a mesma matriz, não significa para o caso, que se tenha vendido o mesmo prédio duas ou mais vezes.
II- A situação dos imóveis configura uma propriedade horizontal em que há unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública como dispõe o artigo 1414º do CC: “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”). A única coisa em comum entre as fracções é o número matricial. E esta coincidência não significa, de todo, qualquer conflito de propriedade.
III. Os números atribuídos a imóveis representam número de polícia para efeitos de identificação de diferentes endereços de prédios num determinado espaço público. Se há algum dever que se impõe em reconhecer a titularidade do direito sobre esta fracção nº 217; esse dever recai sobre a Apelada em relação ao direito detido pela apelante e não o inverso, como se decidiu.
IV- Não é exigível a apelante qualquer reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção nº 217, a favor de WW, pelo facto de a venda efectuada pelo Estado a favor da apelante não estar ferida de qualquer vício decorrente da ausência de titularidade do alienante, afastando-se assim a alegada venda de bens alheios.
ACÓRDÃO
Processo n.º:
011/2022
Relator:
Desembargador Domingos Astrigildo Nahanga
Data do acórdão:
17 de Agosto de 2023
Votação:
Unanimidade
Meio processual:
Apelação
Decisão:
Revogada decisão recorrida
Palavras-chaves: Acção de reivindicação de propriedade; anulação da escritura pública de compra e venda; ex-rua dos pescadores; qualidade de viúva.
Sumário do acórdão
I- A venda efectuada pelo Estado a favor de qualquer uma das partes, no âmbito do seu poder de disposição, sempre se referiu a uma fracção e não a totalidade do imóvel descrito na matriz predial nº 430, como se depreende das escrituras públicas de compra e venda celebradas entre o Estado e as partes., não tendo havido por parte do Estado qualquer transmissão da propriedade de todo o imóvel, a favor da apelante, a venda de que ela é beneficiária não padece de qualquer vício merecedor da decisão de anulação da escritura pública. O facto de nas duas escrituras celebradas pelo Estado com as partes, constarem o mesmo imóvel e a mesma matriz, não significa para o caso, que se tenha vendido o mesmo prédio duas ou mais vezes.
II- A situação dos imóveis configura uma propriedade horizontal em que há unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública como dispõe o artigo 1414º do CC: “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal”). A única coisa em comum entre as fracções é o número matricial. E esta coincidência não significa, de todo, qualquer conflito de propriedade.
III. Os
números atribuídos a imóveis representam número de polícia para efeitos de
identificação de diferentes endereços de prédios num determinado espaço
público. Se há algum dever que se impõe em reconhecer a titularidade do direito
sobre esta fracção nº 217; esse dever recai sobre a Apelada em relação ao
direito detido pela apelante e não o inverso, como se decidiu.
IV- Não é exigível a apelante qualquer
reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção nº 217, a favor de WW,
pelo facto de a venda efectuada pelo Estado a favor da apelante não estar
ferida de qualquer vício decorrente da ausência de titularidade do alienante,
afastando-se assim a alegada venda de bens alheios.
* * *
Os Juízes desta Câmara reunidos em conferência acordam em nome do povo:
I. RELATÓRIO.
Na
sala do Civil e Administrativo do Tribunal de Comarca de Moçâmedes, WW, solteira, filha de (…) e de (…),
nascida aos 12 de janeiro de 1964, portadora do B.I. nº (…), de 20 de Abril de
2010, residente na Província do Namibe, cidade de Moçâmedes, Bairro (…),
intentou, A Acção de Reivindicação de Propriedade, com Processo ordinário contra:
XX,
solteira, portadora do B.I. nº (…), de 20 de Agosto de 2004, residente na
cidade de Moçâmedes, Bairro (…); aduzindo fundamentos em que reivindica, na
qualidade de viúva a titularidade da propriedade do imóvel inscrito a favor de YY
e termina pedindo:
1.
A Avaliação Técnica Patrimonial do imóvel por parte da Repartição Fiscal de
Moçâmedes para se aferir o seu real valor;
2.
Que se reconheça o direito de propriedade pleno da Autora, sobre o imóvel em
causa;
3. A condenação da ré, a restituir
definitivamente a propriedade da A., em bom estado de conservação e livre de
pessoas e bens;
A Ré citada em fls. 44, para os termos
da acção veio juntar contestação defendendo-se ao longo dos seus 53 articulados
de fls. 46 a 55 por Excepções de prescrição,
caducidade, ilegitimidade por falta de litisconsórcio necessário, Impugnação e reconvenção, pedindo em
suma:
a)
Absolvição do pedido por excepções de ilegitimidade por falta de litisconsórcio
necessário;
b)
A absolvição da instância por excepção por caducidade do direito da acção; e
ainda,
c)
A condenação da A. Reconvinda, a reconhecer a titularidade da Ré/Reconvinte
sobre a fracção autónoma n.º 217.º, prédio n.º 3.653, fl. n.º 33, livro B-14 e;
d)
Cancelamento do registo do imóvel feito a favor da A/Reconvinda.
Notificada
a Autora do conteúdo da contestação e pedido reconvencional, veio esta juntar
aos autos réplica e contestando da reconvenção, pedindo pela improcedência da
excepção da ilegitimidade arguida e da reconvenção (fls.73,77 a 86);
Finda
a fase dos articulados teve lugar a audiência preparatória e posteriormente foi
proferido o despacho saneador de que a Ré/Reconvinte, viria apresentar recurso
de agravo e reclamação sobre a especificação e o questionário, o que foi decidido
(fls. 127 e 128,129,130,137 e 138).
Designada a audiência de discussão da
causa, a mesma teve lugar conforme, fls. 162 a 165, 178 a 182, 199 a 204, 236 a
237, e 250 a 251.
Posteriormente
foi proferida sentença que julgou a acção procedente e em consequência:
a) Declarou
nula a escritura pública de compra e venda do imóvel nº 217 celebrado entre o
Estado e a ré XX, por ilegitimidade do Estado e;
b) Condenou
a Ré a restituir imediatamente o imóvel à autora livre de pessoas e bens e;
c) Condenou
igualmente a ré em custas.
Notificadas as partes da decisão de
fls. 258 a 273, a ré inconformada interpôs recurso de apelação, o que foi
admitido por despacho, como sendo o próprio, com subida imediata e com efeito
suspensivo (fls. 282, 284).
Remetidos os autos a esta instância
de recurso e feita a revisão foi proferido despacho nos termos do artigo 701º
do CPC, admitindo-se o recurso como sendo próprio e com o efeito atribuído
(fls. 331).
Notificada a Apelante á fls. 334,
veio esta, apresentar as suas alegações concluindo em suma no seguinte:
1. Não
deixando de reconhecer o direito de ocupação por arrendamento, que a Secretaria
do Estado de Habitação, concedeu ao senhor YY, entretanto, o mesmo não incidiu
sob a Barbearia (…),
tampouco, sob a morada n.º 215;
2. Dá
análise que se faz ao teor do respectivo título de ocupação (vide doc. fls.
18), não pode resultar qualquer hesitação ao julgador quanto ao facto de que a
Barbearia (…), era o
domicílio profissional do senhor YY, e a ocupação por arredamento, foi
concedida sobre a morada n.º 115, de três divisões, destinada á habitação;
3. O
Tribunal a quo, considerou no ponto
n.º 11 (onze), como provado, e cita-se: “através
da celebração de escritura pública de compra e venda, o Cartório Notarial da
Comarca do Namibe, autorizou a compra da residência e do estabelecimento da
fracção autónoma sob matriz n.º 430, ao YY; quando a verdade é que o prédio
sob matriz n.º 430, comporta 3 (três) moradas, que considerando a sua
disposição, de Oeste para Este, as portas estão intercaladas em números
impares, correspondendo as portas ou moradas n.º 215, 217 e 219 (vide docs. n.º
4 e 8, anexos, também carregados nos autos);
4. Se
foi vendida ao Senhor YY, a morada n.º 215, então lhe foram vendidos os anexos,
que é parte habitacional, e não a
Barbearia (…), tampouco a morada n.º 217, conforme faz referência a Mmª
Juíza a quo;
5. O
que significa que, a Barbearia onde actualmente funciona a Foto (…), que é a morada n.º 217, já existia,
sendo o estabelecimento de que a matriz faz referência (vide docs. n.º 7 e 8,
anexos);
6. Deveria
assim, a Mmª Juíza a quo, ter
considerado provado que formalmente a matriz n.º 430, tem um estabelecimento
comercial que é a barbearia (actualmente Foto (…)) e materialmente, tem dois estabelecimentos,
nomeadamente: Foto (…) (antes
Barbearia) e Barbearia (…) (antes
tabacaria), devido as alterações que foram sendo feitas ao longo do tempo pela
viúva e os herdeiros de SS, (vide docs. n.º 6, 7 e 8, anexos);
7. YY,
ex-companheiro da Recorrida/Apelada, ocupou a morada n.º 115, sita na ex-rua dos Pescadores, zona 2,
conforme faz referência o título de ocupação concedido pela Secretaria de
Estado da Habitação (vide doc. fls. 18).
8. E,
se considerarmos ter havido um “lapsus
calami”, que a morada n.º 115, é na verdade a morada n.º 215, então
conforme esclarecido nos artigos 19.º e 20.º, das presentes alegações, ela
corresponde aos anexos e não a
Barbearia (…), (vide docs. N.º 2, 3, 4, 6, 7 e 8, anexos).
9. Sendo a escritura pública a condição de
validade e eficácia do contrato sobre imóveis, é esta que deve determinar o objecto
do contrato e, “in casu”, a escritura
pública foi celebrada sobre a parte destinada á habitação.
10. Ademais, é a escritura pública que serve de
base para o registo do imóvel, portanto o registo deve conformar-se á escritura
pública e não o contrário.
11. Impugna-se a conclusão chegada pela Mmª Juíza a quo, e cita-se: “no caso conclui-se
que YY ex-companheiro da autora foi o primeiro a ter a posse, o título de
ocupação e a proceder a compra do imóvel sob a matriz n.º 430. Em segundo
lugar, quer na entrega do título da posse, quanto na venda do imóvel, á Ré XX,
o Estado fê-lo numa altura em que a transmissão do imóvel já tinha sido feita a
YY.
12. Porquanto,
o Sr. YY, nunca teve posse ou qualquer título de ocupação da morada n.º 217,
tampouco, o adquiriu por compra.
13. Não
é verdade que o Estado, na segunda venda em relação a fracção autónoma nº 217 destinada
ao estabelecimento, procedeu à venda de bens alheios;
14. Não
havia condições legais para o ex-companheiro da Autora/Recorrida, adquirir todo
imóvel da matriz n.º 430, isto é, as moradias n.º 215 e 217, respectivamente,
tampouco, observado os procedimentos para adquirir a moradia n.º 217.
15. Houve uma interpretação errónea do artigo 2.º
da Lei n.º 19/91 de 25 de Maio (Lei sobre a Venda do Património Habitacional do
Estado) por parte da Mmª Juíza a quo
ao decidir pela anulação, da escritura
pública de compra e venda do imóvel sob matriz n.º 430 celebrada entre o Estado
e XX.
16. Foi
o ex-companheiro da Recorrida/Apelada que, de má-fé, comprou um imóvel ocupado
pela Recorrente/Apelante e o seu ex-companheiro, em clara violação dos artigos
1.º, 2.º, 7.º, n.º 1, e 5.º n.º 3, da Lei n.º 19/91, de 25 de Maio (Lei sobre a
venda do Património Habitacional do Estado), artigo 1117.º do C.C, e dos
artigos 7.º e 8.º do Decreto n.º 34/89, de 15 de Julho (Lei sobre Venda do
Património não Habitacional do Estado).
17. Ora,
a posse da Recorrente/Apelante, sempre foi pública, pacífica, titulada, de
boa-fé, efectiva e contínua, não podendo dizer-se o mesmo da Recorrida/Apelada,
que nunca teve qualquer título constitutivo de direito sobre a fracção autónoma
da morada n.º 217, da matriz predial n.º 430, destinada á actividade comercial;
18. As
respectivas fracções autónomas (moradas n.º 215 e 217), foram vendidas em separado,
tendo sido vendido ao Sr. YY, a parte habitacional, morada n.º 215, e a Sra. XX,
a parte comercial, morada n.º 217, portanto a Barbearia, onde actualmente funciona a Foto (…), que é a morada n.º
217.
Notificada,
a Apelada veio contra-alegar (fls. 392 a 398), concluindo em suma pela manutenção
da sentença, nos seguintes termos:
1.
A Apelada é legitima proprietária da
residência em causa, inscrita sob matriz predial n.º 430, pois esta e o seu
esposo de cujus YY, ocuparam o
referido imóvel em 1975, apôs a independência nacional.
2.
Em 1975, após a independência nacional, e
a retirada dos portugueses do território angolano, a Recorrida e seu falecido
esposo, ocuparam o imóvel todo e em 1977, formalizaram essa ocupação, através
de um título de ocupação cedido pelo Instituto Nacional da Habitação no Namibe;
3.
Que desde sempre o imóvel teve quatro
compartimentos, corredor ao lado, quintal com quatro anexos e varanda e um
estabelecimento comercial;
4.
Em função da amizade e camaradagem que o de cujus, YY, tinha com o Sr. XR, também
falecido esposo da R, permitiu que este fizesse o seu negócio de fotografia num
dos compartimentos, negócio este denominado por “Foto (…)”;
5.
E mais, na época, a recorrida e seu
falecido esposo, para que cedessem o referido espaço a Recorrente, tiveram a
pressão do Partido MPLA, sob influência desta, aproveitando-se da
vulnerabilidade do de cujus YY, que
era deficiente de um dos membros inferiores.
6.
Foi a Recorrida quem ocupou o imóvel com
matriz acima referenciada em primeiro lugar, com todos os seus compartimentos,
pelo que, efectuou a compra, porque gozava do direito de preferência, tal como
se procede;
7.
Solicitada a emissão de certidões passadas
pelas duas Instituições, as mesmas atestavam o imóvel como propriedade da
Recorrida, conforme fls. 27, 35 e 38 dos autos;
8.
Impugna-se as alegações da Recorrente ao
fazer entender que a matriz n.º 430 possui dois estabelecimentos comerciais;
9.
Que, a segunda escritura pública, afere
que a Recorrente adquiriu ao Estado, por título oneroso, todo imóvel inscrito
sob a matriz n.º 430, ou seja, os compartimentos supracitados e o
estabelecimento comercial;
10. A
recorrida adquiriu ao Estado, através do Instituto Nacional da Habitação, por
escritura pública, todo imóvel, constituído por 4 compartimentos, 4 anexos,
corredor, varanda, W.C, e estabelecimento comercial, identificado sob a matriz
predial n.º 430, conforme demostram os documentos ora carreados nos autos.
11. O
Estado, mesmo depois de ter vendido para a Recorrida, obviamente já desprovido
de qualquer legitimidade para o efeito, volta a vender o mesmo imóvel a
Recorrente e esta tinha o perfeito conhecimento da titularidade daquela sobre o
imóvel.
Aberta
vista ao MºPº (fls.407 a 409), veio este, em suma, apontar a incorrecção das
alegações e conclusões por falta de indicação de forma sintética dos factos de
que se pretendem ver corrigida, nem os vícios da decisão recorrida e termina
promovendo seja a parte convidada para o aperfeiçoamento das alegações.
Posto isso, seguiram-se os sucessivos vistos legais aos Juízes adjuntos (fls. 411 a 418).
II. FUNDAMENTAÇÃO
Do rol da
matéria de facto em que se fundou a decisão recorrida, extraímos dela como
fundamentos cruciais o seguinte:
1.
Em 2002 o imóvel com a matriz predial nº 430 com a
descrição e características do prédio nº 3248, a fls. 120, do livro B, traço
13º, construído de pedra, cal adobe, terraço e zinco, com 4 compartimentos,
corredor ao lado e quintal, com quatro anexos e varanda destinado a estabelecimento e habitação com ladrilhos e os
tectos forrados a pano, confrontado à
norte com a rua presidente Sidónio Pais, à sul com o prédio dos herdeiros de
Maria dos Santos Laurentino, nascente com o prédio Henriques Pessoa e Companhia
e a poente com João José dos Reis estava inscrito na conservatória a favor do
Estado angolano;
2.
Em 20 de Dezembro de 2002 mediante escritura pública, YY
comprou o prédio urbano inscrito na matriz predial nº 430, destinado a
habitação, no valor em Kz. 9.574,00 (nove mil e quinhentos e setenta e quatro);
3.
Em 17 de Fevereiro de 1991 a Secretaria da Estado de Habitação
concedeu o direito de ocupação por arrendamento a Barbearia (…), na morada nº
215, de três divisões, sita na antiga rua dos pescadores zona -2, ao YY (doc.,
de fls. 18);
4.
Em 20 de novembro de 1985 o MPLA emitiu uma declaração
favorável para a abertura de um estabelecimento para actividade fotográfica a
favor de XR (fls. 57 e 58);
5.
Em 1 de Junho de 1996 a Secretaria de Estado da Habitação
celebrou com XR e XX um contrato de arrendamento de um prédio com nº 217;
6.
Em 16 de Março de 2008, a pedido da XX, a Conservatória
dos Registos da Comarca do Namibe emitiu uma certidão, para efeito de aquisição
de imóvel, declarando que o prédio nº 217, sob matriz 430 estava inscrito a
favor do Estado angolano;
7.
Em 14 de Janeiro de 2015 o Estado celebrou com XX uma
escritura pública de compra e venda da fracção autónoma do imóvel nº 217,
lateral esquerdo, com a quitação integral do preço e pago o imposto de sisa;
8.
A Barbearia (…) situada na morada 215, com três divisões
ocupada por arrendamento por YY está incluída na matriz predial nº 430;
9.
O estabelecimento onde funciona a Barbearia da apelada
corresponde a morada nº 215, com três divisões, situada na Rua dos Pescadores
zona-2;
10. O Estado
celebrou com YY uma escritura pública de compra e venda da Barbearia ocupada
pela autora (doc. 35,37,38 e 160);
E o Tribunal não deu por provado:
1.
Que a fracção autónoma do imóvel nº 217, lado esquerdo
adquirido pela ré, corresponde ao estabelecimento/barbearia em poder da autora;
2.
Que matriz nº 430 possui dois estabelecimentos
III. OBJECTO
DO RECURSO
Face as conclusões apresentadas pelas
partes, que delimitam o objecto do recurso (para além das excepções de
conhecimento oficioso), que decorrem do disposto nos artigos 660º, 664º, 684º
nº 3 e 690º nº1, todos do Código de Processo Civil; emergem como questões a
apreciar e decidir em sede do presente recurso saber:
1.
Se a fracção imobiliária nº 217 foi vendida
duas vezes pelo Estado a pessoas diferentes:
2.
Se a fracção titulada pela apelante corresponde
ao mesmo imóvel que a apelada diz ser dona;
3. Se, se impõe a apelante o dever de
reconhecer o direito de propriedade da apelada sobre o imóvel nº 217;
* * *
III. QUESTÃO PRÉVIA
Atentemos as
questões suscitadas em recurso, sem antes, debruçarmo-nos sobre o seguinte:
O processo judicial é constituído pelos
sujeitos processuais, sendo que as partes processuais são aquelas que se
digladiam por um direito ou posição e o tribunal que é o titular da jurisdição.
Constata-se que no dispositivo da sentença recorrida
em fls. 272 e 273 decidiu-se pela anulação da escritura pública de compra e
venda do imóvel nº 217 da matriz predial, celebrado entre apelante e o Estado
angolano por ilegitimidade deste; tendo para o efeito o
Tribunal enveredado por um labor de produção de prova testemunhal, sendo que
existia no caso presente, documentos bastantes do trato sucessivo dos imóveis, o
que relegaria qualquer prova daquela natureza a uma inutilidade, como aliás
veio a confirmar-se, quando as respostas dadas aos quesitos foram todas
baseadas nos documentos (fls. 246 a 249). Porém, impõem-se considerar no decidido o seguinte:
i.
O contrato
de compra e venda sendo um negócio bilateral, em que há vinculação de mais de uma
parte contratante, os efeitos de quaisquer vícios de que lhe sê oponham devem
ser conhecidos por todos os contratantes;
ii.
O Tribunal
conheceu e decidiu, sem qualquer contraditório, sobre a nulidade da escritura
pública em que interveio o Estado, declarando este ilegítimo, para vender o
imóvel, sem ter sido o Estado configurado e demandado como parte, mesmo tendo
tal facto sido, em algum momento suscitado pela Apelada;
iii.
As decisões a preferir num litígio têm sempre o condão de
produzir efeitos na esfera jurídica das partes, sendo por essa razão, crucial
que as mesmas sejam conhecidas, tidas no processo e ouvidas no âmbito do
contraditório, a luz do número 1 do artigo 3º do CPC. Este dever, ficou
preterido pelo Tribunal a quo;
iv.
O Tribunal
declarou o Estado ilegítimo no contrato de compra e venda do imóvel e essa
decisão nem sequer foi notificada ao Estado, numa clara violação do direito e
dever do contraditório;
v.
A decisão
sobre a anulação da escritura pública de compra e venda da fracção nº 217, nunca
foi pedida ao Tribunal para que este se pronunciasse num ou noutro sentido, o
que acaba por estar em contramão ao que está disposto no número 2/2ª parte do
artigo 660º e número 1 do artigo 661º do CPC, que dispõe: “A sentença não pode conhecer em
quantidade superior ou objecto diverso do que se pedir”. Em qualquer
uma das disposições proíbe-se a extrapolação do Juiz, para significar que o
processo é de partes, devendo por isso o julgador manter-se equidistante das
emoções do conflito, para se evitar a viciação da decisão, nos termos das
alíneas d) e e) do artigo 668º do CPC e;
vi.
O Estado
nunca foi tido nem achado no presente processo, que anula o acto em que
interveio. A questão que se coloca é de saber de que forma poderia o Estado defender-se
de uma acção de que desconhece de todo, quando se pretende assacar-lhe as consequências
com repercussão na sua esfera jurídica e patrimonial; não se tendo observado os
termos do artigo 28º do CPC? o Estado não tendo sido parte no processo tais
consequências, em condições normais, não podem irradiar-se na sua esfera.
IV. APRECIANDO
A questão coloca-se no âmbito da reivindicação dos direitos que advêm da propriedade sobre imóveis e no caso sobre um prédio urbano, em que o Estado, em momentos diferentes alienou fracções do mesmo, a pessoas diferentes, sendo que ambas pretendem seja declarado qual direito existe sobre um determinado imóvel e a favor de quem. A questão reconduz-se ao instituto dos direitos de propriedade cujo objecto é uma fracção do imóvel descrito na matriz predial nº 430 na cidade do Namibe, em que a solução passa pela aquisição e defesa, arregimentadas nos artigos 1302º a 1317º do CC, Lei nº 19/91, de 25 de Maio, sobre a Venda do património habitacional do Estado e outros diplomas afins.
1.
A fracção imobiliária nº 217 descrita
na matriz predial nº 430 foi vendida pelo Estado duas vezes a pessoas
diferentes?
A questão está em torno de saber, se o Estado,
por duas vezes alienou a mesma fracção imobiliária a pessoas diferentes, não
tendo jamais poder para efeito.
As partes vêm em juízo reivindicar o direito
de propriedade sobre a mesma fracção do imóvel, todas elas exibindo títulos,
sendo que a Apelante em nome próprio e a Apelada em nome do de cujus, YY.
O reclamado imóvel é um edifício urbano situado
na actual cidade de Moçâmedes que foi adquirido pelo Estado mediante Confisco,
através da lei nº 43/76, publicado no Diário da Republica nº 97/82, de 26 de
Abril, passando para a esfera
jurídica e patrimonial do Estado na proporção total, conforme certidão de fls.
38. Alias isto é reafirmado e dado por assente na sentença em fls. 266.
Refere a sentença que no dia 14 de Novembro, o
Estado por escritura pública autorizou a compra a YY, do prédio urbano sob a
matriz nº 430, a parte destinada a habitação (fls. 266, &5). A inscrição a
que na mesma página se faz alusão é um equívoco, porque a citada certidão
descreve como sendo uma fracção autónoma do lado esquerdo da Rua Kalumba sob nº
3248, a fls. 120 do Livro B-13º. Por isso, nota-se claramente uma
desconformidade na descrição feita pelo Tribunal em relação ao imóvel comprado
por YY.
Da certidão depreende-se que o que foi vendido
é parte do imóvel e não a totalidade do mesmo. Aliás, só assim, se entende que
na ocasião em que foi requerida certidão à Conservatória, para efeitos de
compra da fracção nº 217, por parte de apelante, a única inscrição que havia é
a de que era propriedade do Estado. Se tivesse havido registo anterior, da
totalidade do imóvel, teria este facto constado na certidão emitida em 16 de
Março de 2008, isto é, 5 anos depois do registo à favor YY; o que não se
verificou, como se constata em fls. 24. Aliás, impõe dizer-se que o registo de YY
foi efectuado em 23.01.2003, muito antes à compra feita pela apelante.
Dispõe o artigo 1414º do CC: “As
fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades
independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de
propriedade horizontal”.
A propriedade
do imóvel com a matrícula nº 430 nunca foi transferida na sua totalidade à YY,
como refere a sentença. O que se depreende dos autos é que a transferência
havida, recaiu sobre uma fracção autónoma. Aliás, basta atentar ao facto descrito
na escritura fls. 32 &4: “Autorizado a compra da fracção autónoma do imóvel
destinado a habitação localizado na rua Kalumba lado esquerdo”. E não é
de ignorar como antecedente de aquisição o facto de que YY habitava com seus
primos e num locado diferente da fracção 217.
A referência de que YY terá pago o preço
total, este valor diz respeito a fracção adquirida e não a totalidade do imóvel
descrito na matriz nº 430, sendo este um conjunto de fracções autónomas,
entendido como dispostas em regime de propriedade horizontal. Este é o
entendimento conforme o artigo 1418º do CC: “No título constitutivo serão
especificadas as partes do edifício correspondentes as fracções, por forma que
estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de
cada fracção, expresso em percentagem do valor total do prédio”.
Na altura em que YY adquire a fracção em 2002,
já a Apelante e esposo ocupavam e detinham um título de arrendamento. E por
isso o Estado sendo pessoa de bem, nunca poderia ter vendido, nem YY poderia
ter adquirido a fracção ocupada pela Apelante. Qualquer construção teórica de
inversão da actual titularidade da fracção nº 217, em desfavor da apelante, nos
termos e por quem é apresentada a pretensão está destituída de qualquer
razoabilidade merecedora da tutela jurisdicional.
Do trato sucessivo havido em relação ao imóvel
com a matrícula predial nº 430, ingressado na esfera do Estado, por confisco é
constituída por mais de uma fracção autónoma. Tanto assim é que têm diferentes
números de polícia ou diferentes acessos principais para à rua. O número 115
como vem inscrito nos títulos de arrendamento de fls. 192 e 193 é o endereço do
locado em que YY habitou com seus primos e o número 217 corresponde a Foto (…), ocupado pela Apelante
e esposo, local onde sempre exerceram a actividade comercial, que veio mais
tarde a ser adjudicado para a compra, segundo relatório (fls. fls. 60, 61 e 185
e 186).
Se
a Apelada reconhece que o falecido marido da recorrente ocupava licitamente e
de forma pública o local com autorização de quem tinha o poder para o efeito, é
estranho que não reconheça a compra por parte da recorrente que adveio do
arrendamento.
Assim entendido, a fracção nº 217, descrita na
matriz nº 430 adquirida pela Apelante mediante escritura pública de compra e
venda, celebrado com o Estado em 14 de Janeiro de 2015, não se confunde com
qualquer hipotético direito de propriedade aqui reclamado pela apelada WW.
2.
A fracção titulada pela apelante corresponde
ao mesmo imóvel que a apelada diz ser dona;
Quando a apelada pediu a condenação
da Apelante, a reconhecer o seu direito de propriedade, o Tribunal a quo decidiu atendendo ao pedido
formulado. No entanto, admitindo que
Apelada, WW era detentora da legitimidade, o direito que pede, que se lhe
reconheçam é a propriedade total do imóvel descrito na matriz predial nº 430,
que, todavia, por todos os documentos e escrituras públicas, o seu alegado falecido
marido, donde diz advir o direito que reclama, nem sequer tinha tal
titularidade sobre todo o imóvel e todas as fracções que o compunham. Basta
lembrar que no âmbito da transmissão de bens só se transmitem validamente os
que se tem titularidade.
Da Sentença em fls. 269, &3 retira-se: “… a
escritura pública de compra e venda celebrada entre o Estado e a ré, não faz
qualquer referência de ter vendido apenas a parte destinada a estabelecimento o
que pressupõe que o Estado vendeu a ré a totalidade do imóvel (estabelecimento
e habitação) doc, a fls. 62 e
64)” (sic).
Daqui se depreende que a julgadora para fundamentar a sua convicção de que o Estado tinha vendido a totalidade do imóvel, inscrito na matriz predial nº 430 a favor da Apelada baseou-se em suposições.
Sendo certo que, pode-se fazer recurso as presunções sempre que tal justifique; nos termos do artigo 349º do CC; porém, retirar do texto da escritura pública, aquilo que não está expresso pelas partes e daí afirmar que o Estado vendeu uma coisa diferente do que realmente foi vendido é de uma grande elasticidade; porquanto a interpretação que deve ser feita aos contratos é conforme o artigo 236º nº 2 do CC, que dispõe: “Sempre que o declaratório conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
O Estado nunca vendeu a nenhum dos compradores, mais do que declarou nas escrituras celebradas entre YY e XX. Cada parte comprou uma fracção autónoma e ainda por cima, para fins diferentes. A parte reivindicada por WW e adquirida pelo falecido YY foi para habitação (fls. 190, 192) e a adquirida pela apelante foi para estabelecimento comercial. Isto é o que resulta dos documentos de fls. 58, 61 e 186. A única coisa em comum entre as fracções é o número matricial. E esta coincidência não significa, de todo, qualquer conflito de propriedade, como se pretendeu fazer crer. Tal situação dos imóveis configura uma propriedade horizontal em que há unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública (Ascenção, José de Oliveira, Direito Civil Reais, pg. 462, 5ª Ed, Reimpressão, Coimbra Editora).
Sendo verdade que das duas escrituras celebradas pelo Estado com as duas partes inquilinas na altura, consta a mesma matriz e a descrição do mesmo imóvel, tal resulta do facto de ser assim nos imóveis objecto da venda e dispostos em propriedade horizontal, independentemente de qual seja o número de fracções, que do mesmo imóvel derivem. O facto de nas duas escrituras constarem o mesmo imóvel e a mesma matriz, não significa para o caso, que se tenha vendido o mesmo prédio duas ou mais vezes.
Ao transmitir por compra e venda a fracção nº 217 descrita no imóvel inscrito na matriz predial nº 430, a favor da apelante, o Estado fê-lo fazendo uso dos seus plenos poderes de proprietário e no âmbito da promoção e concretização do princípio consagrado no artigo 37º da CRA, sem violar a propriedade alheia, contrário ao entendimento vertido na sentença recorrida.
O Estado é uma pessoa colectiva cujo escopo
fundante na sua essência desde os primórdios da sua concepção é perseguir e
realizar interesses colectivos gerais, com eficiência, eficácia e racionalidade.
E dele espera-se sempre uma acção imbuída de boa-fé. Por isso a imagem do
Estado como pessoa de bem, mantém-se inatacável no presente caso; não se tendo
validamente demostrado o contrário.
3. Impõem-se a apelante o dever de
reconhecer o direito de propriedade da apelada sobre o imóvel nº 217?
De
todo o labor feito pela julgadora nos autos e antecedentes dos imóveis
constata-se:
1. Apelante
e esposo sempre tiveram um título de ocupação mediante contrato de arrendamento
com a Secretaria de habitação do Namibe, desde 1981, conforme documentos e
títulos de fls. 58, 59, 60 e 61. Aliás facto esse reconhecido pela apelada;
2. A
autora a quem a decisão recorrida favoreceu, nunca chegou a ocupar de qualquer
forma o imóvel titulado pela apelante, nem mesmo como arrendatária;
3. No
contrato de arrendamento juntado aos autos titulado por YY, enquanto em vida,
nem sequer a apelada constava no agregado do falecido como ocupante ou
co-ocupante do imóvel que viria a ser adquirido por compra por YY, conforme se
vê no título de ocupação e inquérito de fls. 193 e 194;
4. Consta
do B.I. de WW emitido em 20.10.2010 em fls. 13, o estado civil de solteira,
quando o seu alegado esposo teria falecido em 2005. Tal só pode significar que
não sendo casada, até a data do óbito, a qualidade de viúva, que invoca, só
poderia advir de um reconhecimento da união de facto, de que, no entanto, não
se prova nenhures nos autos e nem mesmo na aludida sentença de fls.14, que se
limita a fazer referência de que YY era marido da autora, sem, no entanto,
dizer se, na qualidade de casado, unidos reconhecidos ou simplesmente companheiros
de união de facto;
5. Tal
situação, sendo juridicamente relevante para efeitos de aferição da qualidade e
legitimidade, para WW reivindicar o direito sobre os bens do de cujus, não ficou aqui demostrada a
favor da autora, ora apelada, sendo por isso questionável a qualidade em que se
apresenta na acção, se não vejamos:
a) A
Autora, ora apelada vem na qualidade de proprietária do imóvel que reivindica
titularidade, e pede que se condene apelante a reconhecer aquela qualidade;
b) No
entanto, todos os documentos que exibe em nenhum deles figura de qualquer
forma, como titular ou co-titular de qualquer direito que invoca;
c) Ocorre
que, se a apelada fosse casada com o YY teria o estado civil de casada, até a
data da morte, e não sendo antes, só o reconhecimento da união de facto por
morte lhe daria a qualidade de viúva e por essa via adquirir a legitimidade de
reivindicar todo ou parte do direito sobre imóveis, anteriormente titulados
pelo falecido marido como meeira, não sendo titular ou co-titular doutra forma;
d) Da
actuação da apelada, nem sequer se extrai o entendimento de que ela vem por via
de representação dos filhos herdeiros, havendo-os, e na hipótese de serem
menores ou incapazes; o que no entanto, seria difícil para a primeira situação,
olhando para a data do óbito e a idade que eles teriam a data da interposição
da acção em juízo; a não ser que no extremo tivessem nascido no ano do decesso
do pai, caso em que, pela idade estariam sujeitos a representação, por força
dos artigos 10º do CPC, 124º do CC e 138º do CF. Mas, mesmo aqui, tal qualidade
deveria ser invocada; não havendo qualquer título a conferir poderes para o
efeito;
e) O
ser-se viúva do de cujus, YY não
resulta de qualquer prova apresentada, para além da simples referência na
sentença de fls. 14, que como se demostra recaiu não sobre uma acção de
reconhecimento, e sim em inventário orfanológico, donde não se pode retirar
necessariamente a qualidade de casada ou companheira de união reconhecida, para
legitimá-la a reivindicar a titularidade de qualquer bem, em nome próprio; não
sendo bastante que se tenha vivido o estado de nojo, por falecimento de quem se
tenha partilhado a vida, como se de casados fossem;
f) Ademais,
mesmo nessa sentença do inventário, donde se pretende extrair a qualidade de
viúva e proprietária, a única referência que nela se faz aos bens hereditários
deixados pelo falecido YY, que seriam por hipótese reivindicáveis, é a
residência e a barbearia
e nunca a Foto (…) que é
a fracção que viria ser vendida por escritura pública à apelante. Como aliás,
bem se depreende da cópia da sentença de fls. 14, quando dispõe no seu &2:
“…introduzido
em juízo, foi marcada uma conferência da qual resultou que o falecido apenas
deixou uma residência e uma barbearia…” (sic).
Como
se pode ver ambas partes pedem o reconhecimento do direito de propriedade a seu
favor sobre a fracção nº 217 e o cancelamento do registo da mesma fracção do
imóvel com matrícula predial nº 430, a desfavor da outra.
A
ideia central que a decisão recorrida transparece é a de que o Estado terá
alienado à apelante um imóvel que sobre ele incidia direitos litigiosos. Ou
seja, que o Estado vendeu um bem alheio, pertença da autora, ora, a Apelada;
quando na verdade nunca vendeu um bem alheio, porque na altura da alienação, a
apelada não detinha na sua esfera jurídica e patrimonial aquela fracção.
Da apreensão razoável, que se pode ter de todo histórico
documental, constante nos autos, qualquer uma das partes que adquiriu o imóvel
do Estado devia saber, quer pelos antecedentes, quer pelos procedimentos
havidos para compra, quer ainda pela vontade expressa pelo Estado, em todas as escrituras
públicas, que qualquer umas das fracções objecto do negócio era exactamente a
que as partes ocupavam.
Toda a referência que se faz à propriedade, que o alegado
marido da Apelada ocupou é 115 e 215. A única menção ao número 217 feita por YY
é a que consta do seu pedido formulado, para a compra do imóvel em ruina que alegadamente
ocupava como inquilino (fls.190); mesmo não encontrando qualquer
correspondência com o número dos contratos de arrendamento a seu favor. Para
além disso, tal requerimento sendo de sua autoria, poderia por hipótese, não
corresponder de todo a correcção na indicação do número. Só assim se entende
que os números constantes nos títulos de ocupação a seu favor, não
correspondessem a fracção nº 217.
A venda efectuada pelo Estado a favor
de qualquer uma das partes, YY ou XX no âmbito do seu poder de disposição,
sempre se referiu a uma fracção e não a totalidade do imóvel descrito na matriz
predial nº 430, como se depreende da escritura pública de compra e venda
celebrado entre o Estado e YY, no imposto de Sisa (fls. 15, 16 e 17, 31, 32 e
33 e certidão de fls. 39) e para apelante (fls. 21 e 64).
O único proprietário que tinha titularidade
total do prédio urbano descrito na matriz 430, até a data em que procedeu a
venda parcelar do mesmo, a diferentes beneficiários, primeiro a YY e
posteriormente a apelante era o Estado. E isto é claramente constatável no
averbamento do registo de fls. 38. E nesta qualidade de proprietário total do
imóvel, o Estado procedeu com legitimidade e poderes de disposição que o título
de propriedade lhe confere, para alienar, arrendar ou dispor de qualquer outra
forma, mediante escritura pública, que é o instrumento idóneo, para a
transferência da titularidade de imóveis, nos termos do artigo 875º que dispõe:
“o contrato de compra e venda de bens
imóveis só é válida se for celebrado por escritura pública”.
Pelo contrato de compra e venda feita,
advieram os subsequentes efeitos previstos no artigo 879º do mesmo Código; não
tendo ocorrido as situações previstas no artigo 220º do citado Código.
O
entendimento em conformidade, quer aos factos constitutivos, quer a situação
existente na altura dos negócios de compra e venda de uma e de outra fracção é
a de que as partes ocupavam os locados, mediante contratos de arrendamento. A
situação e o momento da feitura do negócio, não permite razoavelmente ter outro
entendimento possível, que não seja o de que, cada uma das partes adquiriu
licitamente a parte locada de que ocupava efectivamente; se atentarmos aos
pressupostos de compra e venda previstos na Lei sobre a venda do património habitacional do Estado, nos seus
artigos 5/3 que dispõe: “ o Estado na alienação do seu património
imobiliário dará preferência aos seus inquilinos” e artigo 7º “ Cada
pessoa singular, apenas poderá adquirir um só imóvel unifamiliar ou uma só
fracção autónoma”. O que decorre desta norma é que, não era permitido
que alguém que não ocupasse o locado adquirisse o imóvel em detrimento de quem
efectivamente o ocupava mediante título de arrendamento válido. E nenhum
cidadão poderia adquirir mais de um imóvel do Estado, nem este poderia alienar
a uma só pessoa mais de uma fracção.
Admitir
a hipótese de que YY havia adquirido todo o imóvel descrito na matriz predial
nº 430, incluindo os 4 anexos de que se alude fazer referência a matriz; quando
a fracção 217 estava ininterruptamente ocupada por XR e esposa, XX, chega a
soar a hipótese, de que tal imaginária compra de YY teria ocorrido com vícios;
pois este teria adquirido mais de uma fracção e pior do que isso, ocupada por
outrem.
Sendo
certo que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou
detentor da coisa o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição
do que lhe pertence, como dispõe o artigo 1311º do CC; a verdade é que não
basta julgar-se proprietário; sendo antes necessário ter-se a certeza de que sê
é dono. E ser-se dono significa ter um título inequívoco; o que a WW, apelada
nos autos, não tem, senão num imaginário direito putativo, de que não se pode
conferir guarida.
Não tendo
havido por parte do Estado qualquer transmissão da propriedade, de todo o imóvel
inscrito na matriz 430, à favor de apelante, a venda de que ela é beneficiária não
padece de qualquer vício merecedor da decisão de anulação da escritura pública,
como foi decidido; a não ser que se quisesse defender um falso e ilusório
direito sobre uma propriedade cuja defesa estaria fragilizada por carência,
quer de fonte de constituição, quer de posse; já que na primeira situação, a
recorrida não teria como demostrar o título de aquisição e na segunda, o imóvel
de que se julga ser dona, jamais em momento algum exerceu sobre ele, qualquer
posse. Diferente da recorrente, esta exibe um perfilado de documentos revelando
um trato sucessivo de domínio sobre o bem. Só mesmo uma propensão à inversão da
posse detida por outrem é que justificaria a demanda. Mesmo que por
hipótese o imóvel fosse o mesmo; ainda assim, não tendo a apelada provado a
fonte da sua titularidade, como já referido, não lhe sê reconhece qualquer
direito válido, para conferir-lhe razão na reivindicação, nos termos em que a
apresenta; diferente da apelante, a que assiste razão, quanto a sua insurreição
contra a decisão objecto do presente recurso.
Por
tudo isso, qualquer referência que se faz na sentença impugnada, atribuindo-se
a WW a qualidade de titular integral do imóvel descrito na matriz predial nº
430, não resultando tal entendimento, de qualquer prova documental; é quando
muito pretender atribuir uma mera qualidade putativa, à apelada. Aliás, quanto
a isso, importa referir que só mesmo com um esforço, é que a decisão terá ido
para este sentido, se olharmos para a matéria especificada: alínea d): “…YY
pagou o imposto de Sisa…pela compra da fracção autónoma do imóvel, inscrito
na matriz predial nº 430, destinado a habitação, situada na rua Kalumba,
lado esquerdo”. (doc.fls.15); 2- alínea m): “Da fracção autónoma acima descrita, foi
autorizada pela Direcção Nacional dos Registos e Notariados, Cartório Nacional
da Comarca do Namibe, a compra da fracção autónoma do imóvel nº 217, lateral
esquerdo do prédio urbano, a ré XX…”.
Como resulta dos factos, não é exigível a apelante
qualquer reconhecimento do direito de propriedade sobre a fracção nº 217, a favor
de WW, pelo facto de a venda efectuada pelo Estado a favor da apelante não
estar ferida de qualquer vício decorrente da ausência de titularidade do
alienante, afastando-se assim a alegada venda de bens alheios.
O
silogismo seguido na sentença que se impugna ao decidir no sentido em que
decidiu, só pode ter resultado de uma análise enviesada, decorrente de uma
técnica menos clara de formulação de quesitos, que aliás foi reclamado, por
deficiência, conforme, fls.129 e 130, embora se reconheça, que tal reclamação,
também acabou por não trazer nada de inovador.
A
julgadora terá feito uma abordagem fáctica e jurídica descontextualizada do momento em
que se reportam os factos, para que a decisão tomasse aquele sentido.
Os
números atribuídos a imóveis representam número de polícia para efeitos de
identificação de diferentes endereços de prédios num determinado espaço público.
Se há algum dever que se impõe em reconhecer a titularidade do direito sobre
esta fracção nº 217; esse dever recai sobre a WW em relação ao direito detido
pela apelante e não o inverso, como se decidiu.
Qualquer entendimento que nos levasse a considerar a fracção do imóvel detido pela recorrida e a fracção da recorrente, como se de mesmíssima coisa fosse; era o mesmo que dizer que na era da matemática, os números cardinais 115, 215 e 217 são iguais. E chegar a esta conclusão, estar-se-ia muito próximo, de uma miopice, de que se impõe aplicar a cura; qual seja, revogar a decisão recorrida.
Os processos estão sujeitos as custas,
decorrentes da responsabilidade de quem dá causa a acção ou dela tira proveito,
nos termos combinados do nº 1 do artigo 446º do CPC, e do artigo 1º Código das
Custas Judiciais. No caso e em sede de recurso tendo havido oposição nesta
instância; tal responsabilidade deve ser suportada pela apelada, nos termos do
artigo 446º nº1/2ª parte do CPC.
Tudo visto e ponderado, eis, o momento de proferir;
V. DECISÃO
Nestes termos e fundamentos acima
expendidos, os Juízes desta Câmara acordam em conceder provimento ao presente
recurso e em consequência revogam a decisão recorrida, e declaram inexistir
qualquer direito de propriedade da apelada, sobre o imóvel titulado pela
apelante; não havendo lugar a qualquer cancelamento do registo deste.
Custas pela Apelada com taxa de
justiça fixada em ½.
Registe e notifique.
Lubango, 17 de Agosto de 2023.
Os Juízes Desembargadores
Relator: Domingos Astrigildo Nahanga
1.º Adjunto: Bartolomeu José Hangalo
2.º Adjunto: Marta Daniel Marques